O Evangelho de João é singular. E é
provavelmente o Evangelho que mais levou pessoas a Cristo e mais impactou seus
leitores. Com um discurso simples e claro, mas com reflexões profundas, o
Evangelho de João tem revelado Jesus Cristo de maneira única. É em João que
está o verso mais conhecido e mais pregado de toda Bíblia, João 3.16, “Porque
Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele
crer não pereça, mas tenha a vida eterna”.
Mas quem foi João? Por que João escreveu
um Evangelho? Qual o seu objetivo? Essas perguntas tentarão ser respondidas ao
longo desse estudo.
O autor
João era um dos filhos de Zebedeu, seu
irmão era Tiago (Mc 1.19). Juntamente com se irmão, fazia parte dos doze
discípulos mais próximos de Jesus, os apóstolos. João é também conhecido como o
“discípulo amado”, que reclinou no peito de Jesus na ultima ceia (Jo 13.23).
O evangelista narra os acontecimentos de
maneira muito intensa, demostrando assim, a participação real nos fatos
ocorridos. E isso fica ainda mais claro quando a partir de uma análise do
evangelho de Marcos vemos a proximidade do autor com a pessoa de Jesus. Ele
aparece na ressurreição da filha de Jairo (Mc 5.37), na transfiguração de Jesus
(Mc 9.2) e no Getsêmani (Mc 14.33). Ele era um dos três mais próximos de Jesus,
como é narrado nos Evangelhos.
Quando ao seu ministério, João era bispo
em Éfeso quando escreveu o Evangelho. Gundry narra esse fato da seguinte forma:
“[...] o apóstolo João escreveu o quarto evangelho já no termino do primeiro
século da era cristã, em Éfeso, cidade da Ásia Menor”.1
Depois de Éfeso, segundo a tradição, ele
é preso pelo imperador Domiciano e levado para a ilha prisional de Patmos. Foi
nessa ilha que ele tem a revelação do livro de Apocalipse. Posteriormente ele é
libertado e morre de causas naturais em Éfeso, no ano de 103 d.C.
Data
A datação do evangelho de João sempre foi
um grande problema no meio acadêmico. Muitos acreditavam que ele teria sido
escrito por volta do final do segundo século, indo assim contra a tradição, que
acredita na composição do mesmo no final do primeiro século. Vejamos alguns
argumentos que confirmam a datação conservadora.
A linha direta histórica entre o apóstolo
João e Irineu. Irineu foi discípulo de Policarpo, que por sua vez foi discípulo
do próprio João. Irineu faz o seguinte relato, “O próprio João, discípulo do
Senhor – que também tinha se reclinado sobre o peito de Jesus – também
proclamou o evangelho enquanto estava em Éfeso, na Ásia”.2
Outro argumento é o do fragmento papiro
Rylands, ou P52, que foi descoberto no ano 1920 no Egito, por Bernard
Grenfell. Sobre esse argumento Gundry
faz a seguinte observação: “Esse fragmento de papiro data de aproximadamente
135 d.C., e exige várias décadas anteriores para que João fosse escrito”.3
Portanto, existem muitos argumentos
sólidos que colocam a autoria do Evangelho de João próximo ao final do primeiro
século, especialmente entre 70 e antes de 90 d.C.4
Cenário Histórico
Como a datação e o local da composição
foram tratados no tópico acima, o momento histórico do período supracitado, com
a especificidade da região da Ásia Menor, será analisado.
Como foi visto, o autor era um Judeu, que
agora se encontra em uma cidade romana, de cultura helênica. E, essa
“dualidade” é vista no seu escrito. Mesmo trazendo essa bagagem judaica, João
não se vale dela muitas vezes, pois ele quer ser claro para os seus leitores
diretos. Mas isso não o impede de fazer uso de citações do Antigo Testamento,
como observa Hale: “Embora João faça quantitativamente menos uso do Velho
Testamento do que os Sinópticos, ele coloca suas citações em lugares muito
estratégico em seu argumento”.5
E como João faz um dialogo claro para
ambas as culturas, alguns estudiosos acreditam que parte de seus leitores eram
judeus sectários, ou seja, judeus de cultura helênica.6 Quer João
tenha escrito para judeus sectários ou para romanos de cultura helênica, o que
realmente importa é a potencialidade do alcance do seu Evangelho. Pois fala
tanto a judeus, quanto a romanos.
Outro ponto importante daquele período
histórico era o surgimento de um gnosticismo, mesmo que de forma embrionária. O
gnosticismo era uma espécie de religião de mistério que surgiu de uma mistura
de misticismo oriental e filosofia ocidental. Tinha como base de sua crença um
dualismo, como: bem e mal; mundo físico e mundo espiritual. E um dos seus
pensamentos era que o corpo era uma prisão da alma.
E tal heresia chegou a geram um problema
até para a canonização do Evangelho de João. Pois no terceiro século um
presbítero chamado Gaio coloca em cheque o Evangelho de João e o Apocalipse, do
mesmo autor. Como observa Kummel, “Gaio atribuiu João e o Apocalipse ao
gnóstico Cerinto e, assim fazendo, usou como argumento a divergência entre Jo e
os sinóticos”.7
Acredita-se que João de alguma forma
tenha sido influência pelo gnosticismo8, por usar expressões dualistas
como: luz e trevas, verdade mentira, do alto e de baixo, [...]. Mas tais
colocações também são encontradas na literatura do judaísmo heterodoxo da
comunidade de Qumrã.9
Mas o que deve ficar claro com relação
aos escritos de João e o gnosticismo, é o fato de João combater um dos pilares
dessa filosofia/religião, a crença em um corpo mau. Devido a tal crença, os
gnósticos acreditavam que Jesus não havia vindo ao mundo em carne, pois a carne
é má, e Jesus sendo Deus não poderia ficar aprisionado em um corpo. Tal heresia,
João já combate no prólogo, Jo 1.1;14, “No princípio era o Verbo, e o Verbo
estava com Deus, e o Verbo era Deus. [...]E o Verbo se fez carne, e habitou
entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de
graça e de verdade”. João mostra a verdade do Deus encarnado. Vale ressaltar
que é a mesma heresia que o apóstolo Paulo combate em sua carta aos
Colossenses.
Propósito do livro
O evangelista deixa claro o propósito de
seus escritos, e o fazem João 20.30,31: Jesus realizou na presença dos seus
discípulos muitos outros sinais miraculosos, que não estão registrados neste
livro. Mas estes foram escritos para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o
Filho de Deus e, crendo, tenham vida em seu nome. Olhando com mais atenção
para o texto, podem ser destacados alguns dos propósitos do Evangelho de João.
A primeira parte a ser destacada é a
palavra creiam. Muitos têm discutido sobre o verdadeiro sentido dessa
palavra. Se ela é um verbo no aoristo ou no presente. Se tem o objetivo de
produzir uma nova fé ou revigorar a fé existente.10 Isso não tem
muita importância, como observa Bruce: “o relato de João tem poder de despertar
fé nova e reavivar fé já exitente.11 Crer em Jesus é um movimento
continuo e perene, quando se inicia não para mais.
A segunda parte a ser destacada é o
“objeto” da crença e suas implicações. E João deixa claro que seu propósito é
crer em Jesus, mas Jesus na qualidade de Cristo, ou Messias. Aquele que havia
sido prometido pelos profetas do Antigo Testamento. O Messias (Jo 4.26), a luz
do mundo (Jo 9.5), o pão da vida (Jo 6.48), EU SOU (Jo 8.58). É crer na
divindade e humanidade de Jesus, pois Ele é o Verbo encarnado.
Mas Ele não é somente o Messias
prometido, Ele é o Filho de Deus. Filho de Deus no tocante ao seu
relacionamento com o Pai, como observa Cullmann: “Indiscutivelmente, o título
“Filho de Deus” caracteriza de maneira particular e totalmente única a relação
entre Pai e Filho”.12 Não no sentido de geração, pois o Pai e o
Filho são coeternos, mas no sentido de identidade. Como Jesus falou, “Quem me
vê, vê aquele que me enviou” (Jo 12.45 c.f. 14.9). Jesus é a expressão exata do
ser de Deus (Hb 1.3).
Mas essa crença tem uma finalidade, um objetivo. Que esta na
expressão, tenham vida em seu nome. Crer nesse Messias, no Cristo, no
Filho de Deus, é dar um salto existencial. É sair da morte para vida. Do
cativeiro para liberdade. Da condenação para a reconciliação. Pois como Paulo
fala aos efésios, “Vocês estavam mortos em suas transgressões e pecados”
(Ef 2.1). Estão alienados de Deus, sem vontade, sem esperança. Mas Paulo
continua, “Todavia, Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com
que nos amou, deu-nos vida juntamente com Cristo, quando ainda estávamos mortos
em transgressões — pela graça vocês são salvos” (Ef 2.4,5). Aquele que crê
em Jesus agora tem vida nele.
Como os propósitos do Evangelho de João são
lidos. Um Messias prometido; um Deus encarnado, que revela a graça e misericórdia
de um Pai amoroso; que vem para nos salvar. E toda essa maravilhosa graça, Porque
Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele
crer não pereça, mas tenha a vida eterna (Jo 3.16).
1 Robert H. Gundry, Panorama do Novo
Testamento. (São
Paulo: Vida Nova, 2008) p. 322.
2 Irineu, Contra heresias 3. 1. 1.
3 Robert H. Gundry, Panorama do Novo
Testamento. (São
Paulo: Vida Nova, 2008) p. 322.
4 A Essência do Novo Testamento, Elmer L. Towns /
Bem Gutierrez editores (Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2014) p. 80.
5 Broadus David Hale, Introdução ao Estudo do
Novo Testamento (São Paulo: Hagnos, 2001) p. 156.
6 c.f. Broadus David Hale, Introdução ao
Estudo do Novo Testamento (São Paulo: Hagnos, 2001) p. 157, 158 e 159.
7 Wener Georg Kummel, Introdução ao Novo
Testamento (São Paulo: Paulus, 1982) p. 249.
8 c.f. Broadus David Hale, Introdução ao
Estudo do Novo Testamento (São Paulo: Hagnos, 2001) p. 160.
9 Wener Georg Kummel, Introdução ao Novo
Testamento (São Paulo: Paulus, 1982) p. 278.
10 c.f. F. F. Bruce, João: introdução e
comentário (São Paulo: Vida Nova, 1987) p. 337.
11 F. F. Bruce, João: introdução e comentário
(São Paulo: Vida Nova, 1987) p. 338.
12 Oscar Cullmann, Cristologia do Novo
Testamento. (São Paulo: Hagnos, 2008) p. 353.